Arrábia75
Já há uns dias que me andava a apetecer uma daquelas voltinhas que nos
deixam a transbordar de satisfação, seja pela sua localização,
dificuldade ou o que for. Apetecia-me uma daquelas passeatas que nos
deixam ligeiramente empenados no final mas com um agradável sabor de boca, a alma cheia de boas sensações e os músculos doridos nos dias que se seguem.
Procurei na pasta dos Projectos, aquela onde moram os tracks GPS que
pretendo algum dia completar, - há lá de tudo e para todos os gostos,
trilhos e caminhos desde norte a sul de Portugal, incluindo outros fora
fronteiras – procurando por algum que reunisse as condições para
satisfazer as minhas necessidades.
Essa pastinha guardava preciosamente um track do Leonix (companheiro do ForumBTT), apregoando 75 quilómetros pelos melhores trilhos e single-tracks que a belíssima serra da Arrábida tem para oferecer.
Entre este e o “S3K” da autoria dos PedraAmarela pendiam os pratos da
balança. Mas como Sintra conheço bem, a Arrábida levou a melhor sobre a
escolha. E embora com um acumulado mais humilde e de menor quilometragem
não deverá certamente ficar a dever muito, em dureza e tecnicidade, ao
track desenhado pelo grupo sintrense.
Eram 10h30 quando comecei a pedalar, já tarde é óbvio, saindo desde o
largo da rodoviária de Palmela direito ao Single do Castelo que começava
lá mais em cima, seguindo através de um bonito jardim para lá chegar. A
subida para chegar de novo à vila haveria de ser feita pela subida de
calçada romana, contornando toda a encosta sul do castelo.
Tinham início as hostilidades...
Local de inicio...
Single-track do Castelo...
Encosta sul do castelo de Palmela a subir pela calçada romana.
Sigo depois pelo Caminho dos Moinhos na direcção da serra do Louro.
O tempo estava porreiro. Soprava de norte um vento forte, mas que
trazia consigo uma frescura que amainava o dia quente que se fazia
sentir. Felizmente, o dia manteve sempre estas condições tendo-se
mostrado realmente favorável, inclusive com algum vento pelas costas em
algumas circunstâncias providenciais. Claro, e de frente noutras!
No Caminho dos Moinhos...
Umas antigas ruinas...
Faço a primeira paragem depois da subida Zig-Zag para comer e fazer
outra coisa que me vinha a apetecer já há um bocado. Uma mija valente!
Passo pelo Moinho do Cuco e por mais um moinho, este, embora bastante
degradado, ainda mantém a sua construção de pedra original. Passo ainda
pelo Fim do Mundo e desço até cruzar a estrada nacional.
Adiante encontro a subida que dá pelo nome de Up Azeitão e acabo por
entrar num single muito divertido com umas enormes lajes de calcário e
umas zonas bastante técnicas e apelativas. Até Oleiros foi um tirinho.
Aí tinha possibilidade de reabastecer de água que acabei por não fazer.
Esperava almoçar na Comenda e lá haveria nova hipótese de conseguir o
precioso líquido.
A chegar ao Moinho do Cuco...
Construção ainda original...
Subida Up Azeitão...
Um trilho bastante divertido antes de Oleiros...
De passagem por Oleiros...
Depois da povoação de Oleiros haveria de conhecer o tão famoso trilho
da Falésia. Um single que percorre uma pequena falésia calcária com
pouco mais que 300 metros de extensão. Uma pérola. Sem dificuldades de
maior a não ser a sua exposição é realmente uma pequena delicia.
Mais à frente acabo por sofrer uma pequena queda, numa zona que já
conhecia. Uma escorregadela e num ápice estava a deslizar descida
abaixo, lateralmente, resvalando pelo chão uns metros. Ainda parvo, olho
para cima e falho em perceber o que me fez cair. Enfim, azelhice ou
distracção, o que é facto é que estava no chão. Sacudo-me e enquanto
levanto a bike procuro os danos da minha escorregadela. Não encontro
nenhum.
Vistas desde as imediações do Trilho da Falésia...
Trilho da Falésia...
Trilho da Falésia...
O Carrossel surge depois de uma curva. Terrivelmente vincado no início
por uns sulcos enormes e muito fundos, acabou por ser um pedaço de
caminho bastante divertido. Um verdadeiro carrossel de sobe e desce. Um
ondulante rompe pernas que me transporta, intervalado com mais uns
quilómetros de caminhos, até ao Velho das Saias. Um caminho formado por
um túnel de vegetação, não desprovido de zonas técnicas com passagens de
pedras com curvas apertadas e sinuosas, sempre resguardado à sombrinha,
sempre a descer. Bem, quase sempre.
No inicio da subida de empedrado que o track marcava como Morena, ou
Categoria, – fiquei na duvida – pensei que seria sempre a dar-lhe pois o
bom piso assim o apregoava. Mentira, acabo por apear logo depois da
primeira curva para deixar os pulmões restabelecerem o seu ritmo normal,
debaixo de uma sombra do caminho. Volto a montar, mas volto a parar
novamente no topo da dura rampa. Encostei-me, literalmente, a um
pinheiro e aí descansei o suficiente para que os pulmões não saltassem
cá para fora - tenho que deixar mesmo de fumar. - Mas como sempre, uma
subida antecede sempre uma descida, que deu novamente pouco espaço para
descansos
Trilho Carrossel...
Velho das Saias...
No inicio da Morena...
O Single do Outão, aparece do outro lado da estrada, reconheci-o de
outras andanças. Mas hoje custou-me mais do que nas anteriores
passeatas. Fi-lo devagar, devagarinho, sem pressas. Este pequeno trilho,
apesar de fácil tem umas zonas muito belas e mantém uma vista
avassaladora uma vez chegado ao fim da primeira secção.
A fome já apertava e já só me lembrava da sandocha de presunto e
queijo da serra – da Estrela, claro – que trazia na mochila. Já tinha
comido os pêssegos que trazia, já tinha comido algumas barritas e
especialmente já tinha bebido 3 litros de água. O meio litro do cantil, -
com o sumo do Hulk – já havia ido e dentro do camelbak restavam somente
umas goladas. Começava a tornar-se urgente chegar ao parque de merendas
da Comenda.
Sentindo o camelbak vazio nas costas, continuei a pedalar, não tinha
outra escolha, mas sabia que ainda teria pela frente uma subida com um
nome pouco promissor. A subida das 3 Etapas. E que **** subida. Dura e
longa, terrivelmente empinada e técnica nalgumas zonas. Eu desmontei
assim que lhe percebi a cor. As forças iam-se esgotando e achei por bem
facilitar um pouco a coisa e ir empurrando a bike monte acima. Foi
duríssima na mesma. Não faço ideia da inclinação daquela 2ª etapa mas
era da família das denominadas na gíria por “paredes”. Eu arriscaria ser
mesmo um parente muito chegado! Facilmente acima dos 15%, garantido.
Single do Outão...
Single Maravilha...
Uma outra zona do Single Maravilha...
No principio da subida das 3 Etapas...
Mas tudo tem o seu tempo e o das 3 Etapas havia culminado.
Encontrava-me agora numa zona com vistas privilegiadas sobre Tróia,
Setúbal e sobre o estuário do Sado... Via inclusive os verdes ferrys que
fazem a travessia Setúbal-Tróia, tão pequeninos vistos daqui de cima
que parecem de brincar. O caminho é uma pista de terra vermelha
rapidíssima que através de uma suave ondular pela cumeada me leva à tão
ansiada área de lazer e de merendas. Mais uma curta descida e chego à
Comenda!
Enchi o bandulho com o que trazia de casa. Comprei duas garrafas de
água de 1,5 Litros e uma torta – que apesar de aparentar ter mais de 15
dias, tinha açúcar e serviria como sobremesa. Comprei mais um sumo,
depois de ter pedido uma Coca-cola e me ter sido dito que:
“Infelizmente, não temos.”
Sentei-me numa das mesas que ocupam o espaço. A paragem demorou pouco
mais de uma hora. Antes de zarpar comprei mais uma pequena garrafa de
0,5L para preparar nova dose de bebida energética e depois de fumado o
cigarro da praxe pus-me finalmente a caminho.
Caminho rapidissimo com optimas vistas...
Sempre a rolar...
A peninsula de Tróia...
Comenda...
Até tem uma pequena praia. Não fui a banhos pelo adiantado da hora. Bem que apetecia...
Os trilhos perdem-se mais ou menos à cota, permitindo um rolar solto e
rápido. Caminhos que já conhecia levam a outros que fico a conhecer,
num imenso corrupio de sensações. Passo por um género de portal feito em
toros de madeira, um género de portal de entrada e saída para um mundo
distante, antigo. Escondido dos olhos do mundo pela densa vegetação que o
envolve. Mais à frente uma avenida de Palmeiras. Depois disto, uma
longa e empinada subida que me levou até à Calçada Romana. Uma calçada
romana muitíssimo bem conservada. A superfície pedregosa e compacta fez o
meu corpo vibrar por todos os lados. A suspensão – a da frente e a
traseira – no seu curso máximo fazia o que podia por me manter
confortável, mas nada houve que provasse esse facto. Todos os músculos
me berravam aos ouvidos. As pernas, os braços, os pulsos, as costas.
Todas as articulações e tendões do meu corpo gritavam de dor.
Quando cheguei ao local de Casal das Figueiras nem queria acreditar.
Estava ainda inteiro, embora momentos antes todo o meu corpo aparentava
ir-se desintegrar a qualquer instante. Abençoada subida da Tartaruga.
Longa e empinada em alguma zonas, mas de piso suave e macio permitiu
concentrar-me novamente e ir libertando a tensão que a descida anterior
provocara. No entanto, as pernas acusavam já verdadeiro cansaço e foi
sem cerimónias que parei e descansei, enquanto bebia mais uns valentes
golos daquele sumo verde que trazia no cantil dentro da mochila. A água
essa, desaparecia à velocidade de enormes golos de cada vez que mordia a
torneirinha de borracha.
Trilhos rápidos, ondulantes e frescos...
Uma estrutura curiosa no final de um trilho...
A tal “avenida” de Palmeiras...
Mais uma subida dura de roer...
Já na Calçada Romana. Aqui ainda um prazer...
A descida final da mesma Calçada. Aqui já um verdadeiro tormento...
A certa altura, o track vira à esquerda e leva-me até à Capela de S.
Luís. Numa altura propícia, diga-se. Belo o trilho, - outrora
single-track, aposto – que me transportaria à capela. Uma zona mais
plana e depois uma valente descida que termina num labirinto de sulcos
com mais de meio metro de profundidade. Sozinho, opto pela segurança e
desço a primeira parte a pé, fazendo a restante montado na bike, mas com
ela dentro de um dos regos, empurrando e mantendo o equilíbrio com os
pés, enquanto afrouxava a pressão nas manetes dos travões.
Contorno a capela na sua totalidade e tiro umas fotos. Puxo de uma
barra que devoro enquanto procuro o melhor ângulo para mais um retrato.
Daqui até à subida das 2 Cerejas foi um tirinho. Antes ainda surge o
Single do Tanque à esquerda e só depois de mais uns trilhos, enfrento a
dura subidazinha. Longa e empinada, foi uma das mais violentas de todo o
percurso. Talvez tenha completado ¼ dela apeado.
Descida para a capela de S. Luis...
Na capela de S. Luis...
Mais uma foto enquanto engulo mais uma barrita...
Todo o corpo começava a apresentar desgaste e a coordenação via-se
afectada com isso. O trilho Raízes, embora bastante divertido e técnico
foi palco de alguns sustos, mas nenhum com consequências. Em
determinadas alturas é preferível ser adepto incondicional da gravidade e
passar “depressa”, mas eu gosto de descer devagar, apreciar a
dificuldade do obstáculo, medir-me com ele. Mas com o cansaço chegam
dificuldades acrescidas. O equilíbrio já não é o mesmo, o corpo já não
reage tão rápido como se gostaria, os instintos são abafados pelas dores
no corpo.
Por isso me sabe tão bem quando chego novamente ao piso liso e macio
da pista de gravilha que me leva até ao início do trilho da ½ Encosta,
também conhecido como Fio Dental. Claro que antes ainda tive que trepar
mais uma subida valente, mas anestesiado como vinha, pouco ou nada
acrescentou às mazelas que já trazia.
Antes de me meter ao caminho pelo trilho que se abria à minha frente
volto a comer e a beber uns golos do cantil. O single-track que corre a
meia encosta acaba na estrada dos Barris, a qual sigo até ao desvio que
me levaria à Quinta da Escudeira e à subida que ostenta o seu nome. Devo
admitir que nesta altura pensei em rumar ao carro, de tão perto que
estava, mas controlei-me e segui o plano inicial.
Mais um single-track...
Altura em que andei um pouco perdido. O GPS “congelou”...
Trilho da ½ Encosta, ou Fio Dental...
A subida da Escudeira surgiu inevitável, assim como eu senti
necessidade de apear. Inevitável! Demorou, mas recomposto lá acabo por
concluir a penúltima subida do dia. Atinjo a cumeada e nela sigo por
estrada asfaltada até ao seu final, descendo pelo trilho marcado no mapa
como Downhill – ou pelo menos muito perto deste. O que sei é que a
descida foi muito boa, mas muito lenta e demolidora para o que restava
das minhas massacradas costas. – Hoje vinham a moer-me particularmente
mais que o costume.
Restava apenas a infame Cobra. Uma pista branca de gravilha e poeira.
Longa, mas relativamente suave. Fi-la sem pressas. O sol brilhava já
baixo no horizonte. Já passava das 19horas e os dourados raios de sol
formavam uma cortina amarelada quando atravessavam o pó que pairava no
ar, levantado pelos carros e motos que comigo se cruzaram.
No inicio do caminho que levava à Quinta da Escudeira...
Castelo de Palmela de novo à vista...
Nos trilhos do Downhill que acabaram com o que restava das minhas costas...
Depois de superada a Cobra, já no asfalto da vila...
Tinha pó em todo o lado. Os meus pneus eram totalmente brancos. A bike
preta vinha de cor cinza-claro. Os meus dentes estavam cobertos por uma
granulada camada de qualquer coisa. Quando pisei novamente o
alcatrão e desci para o local onde estava estacionado o meu carro
percebi o meu estado. Ao passar por uma montra qualquer vejo o meu
reflexo. Uma cena fininha, magricela, com um terrível aspecto de cansado
e coberto de uma película esbranquiçada que ao ser sacudida levantava
uma nuvem de pó branco no ar.
Nove horas depois de partir estava de novo ali. Eram 19h20 quando
encostei ao carro, depois de umas voltas ao jardim para arrefecer um
pouco. Fazia muito tempo que não sentia aquele aperto inicial de
câimbras e chegou a acontecer-me algures lá para trás durante a
Escudeira e mesmo na descida seguinte. Depois de uns demorados
alongamentos e da bicicleta arrumada sento-me finalmente ao volante.
Parecia manteiga o sofá que agora tinha debaixo do rabo.
- Menos um na pasta dos Projectos!
Agora sim, podia dizê-lo em alto e bom som e apreciar o fugaz momento,
pois assim que rodo a chave na ignição e o motor arranca, tudo se
esfuma num ápice e a realidade apodera-se de novo de mim. Estava
atrasadíssimo para o jantar, no Cacém, em casa dos meus pais.
No rádio entoava uma canção que entrava que nem ginjas no momento...
“Quando a cabeça
não tem juizo,
O corpo é que paga...
Deixa-o pagar, deixa-o pagar,
Se tu estás a gostar...”
Fazendo as contas – olhando para o gps, melhor dizendo – acabei por
pedalar 76km, durante pouco menos de 7 horas de pedal e as restantes nas
necessárias paragens pelo caminho. Trepei um total 2492 metros e desci
outro tanto, com uma média de 11,6km/h. Consumi perto de 7 litros de
água e devo ter deixado no caminho igual percentagem de suor.
_________________________________________________
Já só me resta agradecer, de novo, ao "patrocinador" de tão espectacular passeio...
Obrigado Leonix, pela aventura que me proporcionaste!
A galeria completa de fotos pode ser vista aqui: Arrábida75
Este fabuloso Track pode ser conseguido aqui: Tracks4You
Abraços
Sem comentários:
Enviar um comentário