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domingo, 21 de junho de 2009

Ruta "Pedals de FOC" - Dia 1

Esta crónica relembra uma passeata que fiz pelos Pirineus em Junho deste ano, a mitica "Ruta Pedals de FOC", percorrendo a bela zona do Parque Natural de Aigüestortes e Sant Mauriç di Estany...
Uma foto-report/crónica das minhas aventuras durante esses magnificos dias...

Os dias que antecederam a partida a 21 de Julho podem ser lidos aqui
[Crónica] Pedals de FOC - Dia X
[Crónica] Pedals de FOC - Dia 0

O relato completo, mesmo completo, também está por lá se quiserem perder tempo...
Demorou um pouco a sair do rascunho, mas já cá está.
Espero que gostem tanto de o ler como eu gostei de o escrever!
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21 Junho 2009
Viella – Gotarta


Depois de um pequeno-almoço principesco no Hotel Pirene, com tudo que me coube no bucho e a que tinha direito, saio para a rua à espera do BUS que nos levaria até à outra vertente do túnel de Viella que percorre cerca de 6km por dentro das entranhas da montanha para sair a sul, junto a Espitau de Viella, e que chegaria às 08h00 em ponto!

Prontos estávamos mais de uma dúzia de parceiros de aventura. Um casal vindo de Barcelona e que montava num tandem MSC de dupla suspensão muito bonita, um rapaz de Madrid que iria fazer a travessia nas mesmas etapas que eu, e um grupo grande, estilo familiar, que englobava um casal de Valência – o José e a Amparo – uma família inglesa fixada também em Valência há 27 anos e que tinha como anfitrião um senhor do mais simpático que conheci de graça Ken Hogan, as suas duas filhas, Suzanne e Kate, e ainda Alexander e Kharim, este último também de Madrid.

No BUS apenas falei com o rapaz madrileno que por curiosidade é amigo e companheiro do espanhol que me cedeu os tracks da PdF – Edição de 2007, a partir do foromtb – Isto de dizer que o Mundo é um T0, não é à toa…
O moço não queria acreditar que tinha feito 1300km para ir fazer a Ruta! Não tinha conhecimento de nenhum português a fazê-lo até à data.
Dizia ele que era preciso “tener muchas ganas de hacerlo!”

Era bem verdade! - Há anos que sonhava com aquilo.

A amena cavaqueira serviu na perfeição para não perceber os 25 minutos de viagem que demorou o pequeno autocarro até parquear no Parking del Bosque de Conangles, onde está situado o km0, início oficial da travessia.

Os últimos preparativos, como suspender os alforges no suporte, fixar tudo, confirmar que está tudo ok, resetar dados do gps, fumar o cigarrinho da praxe, etc, aconteceram num ápice e depois de “cravada” a solene foto a uma das companheiras – que ainda não conhecia – era hora de me fazer ao caminho, atrás do “tio” madrileno e do casal do tandem.


Et ça commence! Foto por Kate Hogan

Os primeiros quilómetros foram ladeando o rio Salenques, por um GR belíssimo, obrigando logo nos esforços iniciais, os menos aptos a carregarem as montadas às costas já que o trilho tinha zonas a pedir bastante das unhas, com muita pedra, fazendo deste um inicio mágico…
Mas a determinada altura o trilho funde-se mesmo por entre as pedras e o rio que transborda da sua clausura, obrigando-nos aos quatro a estudar várias hipóteses até darmos com a certa para conseguir seguir em frente.


Parte inicial do percurso junto ao rio Salenques…

A “pareja” de Barcelona e o “tio” madrileno que seguia também em solitário…

Na ponte de Forcat…

Depois de passada a ponte de Forcat, parei para vestir algo mais fresco e para saciar outras necessidades mais básicas ainda.
O Livro de Ruta mostrava-se verdadeiramente simples de seguir e depois de habituado ao folhear das páginas a coisa estava perfeitamente dominada.
Depois de aliviado volto ao pedal para atravessar a povoação de Forcat, seguir direito a Vinyal até Ginast, sempre através de paisagens de prados e campos do vale.
Depois de passar esta última povoação entrei num dos primeiros single-tracks do dia e dos dias que se seguiram – os senderos, como em Espanha são conhecidos. Ao inicio um carreiro de pé posto, depois alargava um pouco, mas mantinha-se serpenteante ladeando os campos e que me levaria até pertinho do Santuário de Riupedrós. Muito bom!

Daí até à povoação de Vilaller foi um tirinho.


Villaler…

Os primeiros senderos, como por aqui são conhecidos…

Desde o Barranco de Vinyassola que vinha a subir progressivamente. A povoação de Vilaller estava situada a 986m de altitude e o Coll de Serreres, passagem obrigatória para quem pretender mudar de vale, 370m acima desta, a 1354m de altitude. Uma subida de 3.5km em bom piso no meio de densos e frescos pinhais, que iam deixando aqui e ali ver para lá do denso arvoredo, mostrando um horizonte difícil de descrever.
À minha esquerda ia descobrindo a crista rochosa onde se encontram os picos do Tossal de l’Orri, Cap de Concesse e Tossal de les Roies de Gardet, todos acima dos 2300m de altitude…

Vistas ao longo da subida. O pico da direita é o Tossal de l’Orri…

A chegar à passagem para o Vall d’Boí, o Coll de Serreres, a 1354m…

Chegada a hora de começar a descer algo me obrigou a parar.
A paisagem era de tal maneira incrível que demorei bastante mais que o necessário para me recompor da subida. As cores eram tão vibrantes que pareciam animadas de vida própria e os contrastes aconteciam com uma genialidade desumana. Brotava de todo o lado uma energia impossível de decifrar.
Os trilhos mudavam rapidamente de cinzento para branco, para depois se tornarem vermelhos, tudo isto salpicado de amarelos, muitos verdes e doses massivas de azul. Os peculiares sons que me afagavam os ouvidos formavam a banda sonora de uma palete de cores infindável mesmo para o mais criativo dos artistas. Um verdadeiro festim para os sentidos da alma!

As cores vibrantes e poderosas e as vistas exuberantes que se estendiam até onde a vista alcançava…

Descendo até Llesp completamente deslumbrado com a paisagem, acabei por me perder. Ou melhor não me perdi, foi mais o facto de duvidar se estaria, ou não, no caminho certo. E afinal até estava!
Mas tal desatenção teria um preço deveras doloroso – agora sim, já sei o que sentem os animais quando tocam nas vedações electrificadas…
Depois de passar uma primeira vez a dita cerca – a electrificada pois claro – que faço com extremo cuidado, tive que voltar a passar no sentido inverso pois achava que estava mal.
Volto para trás, volto a abrir e volto a fechar a cerca, segurando no único sitio possível e evitando qualquer contacto com os varões metálicos que se encontram animados de vida “eléctrica” e sigo uns metros atrás à procura de algum desvio mais óbvio que aquele que tomara. Subo uns valentes metros da descida que tinha acabado de fazer e nada de outros caminhos.
Tinha que ser aquele! – Acabo por deduzir.
Volto para baixo, novamente até à cerca, agora confirmando que realmente era mesmo aquele o caminho que o Livro indicava.
Paro em frente à cerca, volto a abri-la novamente, avanço a bike sem desmontar e tento – este foi o meu erro – tentar fechar a cerca com a mão atrás das costas e…

Ahhhhhhhhhhhhhh…

Os segundos iniciais foram surreais, deixando-me bastante desnorteado até perceber exactamente o que se tinha passado. A dor flamejante na ponta do dedo e a dormência do corpo eram por si só demais evidentes.
As vacas olhavam para mim completamente incrédulas. Deduzo que rindo à grande e à Francesa. Neste caso, à Catalã…

“Vacas(!)” – Lanço para o ar em tom de escárnio.
“Um gajo quase morre aqui e vocês riem-se” – Continuo a barafustar enquanto descalço a luva para me certificar que não havia queimaduras.

A ponta rosácea e latejante do meu dedo mindinho era uma cruel testemunha da minha incrível burrice. De um momento para o outro esqueci-me que aquela m**** dava choque e sem ver o que estava a fazer acabei por tocar com a ponta do dedo no varão metálico. Os pés em cima da chapa foram a cereja no topo do bolo, permitindo a descarga eléctrica passar livremente pelo meu corpo até se perder na terra… Foram meia dúzia de Volts com certeza, mas deixaram-me completamente abananado!

Depois do susto inicial e quase totalmente recomposto acabo por passar pelo cemitério de Llesp e uns metros mais à frente entro na bonita povoação.


Lugar do “Choque Eléctrico”…

Povoação de Llesp…

Logo a seguir à povoação de Llesp entramos numa pequeno caminho, com cerca de 11 quilómetros de extensão, todos eles de uma beleza avassaladora.
O seu nome, Camí del Aígua, quer dizer “Caminho da Água” e percebe-se bem porque, já que todo ele percorre as sinuosas margens de um bonito mas rebelde curso de água. Um pequeno oásis de tranquilidade e sombra.

Todo o trilho é perfeitamente ciclável e algo único.
Além dos barulhos provenientes do meu conjunto, tudo o resto era harmónico e perfeito. Um cantinho que fiquei feliz por conhecer.


Camí del Aígua…

O trilho desemboca directo na estrada que leva a Iran, a partir de onde seriam precisos mais 2.5km de subida para vencer os 248m de desnível vertical que me separavam de uma Coca-Cola fresquinha!
Iria também fazer o primeiro controlo da travessia neste mesmo pueblo.
Os controlos consistem em carimbar o Livro de Ruta em determinados lugares específicos e que são obrigatórios cumprir se pretendemos o Jersey de Finisher. E em Iran esse controlo seria o C2, na Casa Joanot.


Povoação de Iran ficando para trás…

Desde Iran tinha mais 3km de subida pela frente.

“1.5km de rampas duras e 1.5km progressivos” – Apontava o livrinho.
“E que raio quererá isto dizer?” – Lembro-me de pensar.

Sentado à porta da Ermida trato pois de atacar o que trazia de almoço. Uma sandes ainda resistia! Mais uma banana e uma maça, uma barrita de geleia e muita água. Como estava quase no final da tirada de hoje e até lá seria sempre a descer, dei-me ao luxo de me perder por um bocado naquela imensidão de espaço.


Ermita de Sant Salvador, no Coll de mesmo nome, a 1399m de altitude…

Descida em estradão de gravilha para a povoação de Gotarta…

Gotarta…

À porta da Casa Vilaspasa de Mercês. Uma anfitriã super, parecia nossa mãe…

Dar com o sítio de pernoita não foi fácil, mas nada que duas voltas à vila não resolvessem. Ao tocar à campainha, surge à porta minutos depois, uma senhora magrinha, dona de uns olhos muito expressivos, morena e de pele encortiçada, muito simpática que antes de me dar tempo de dizer o que quer que fosse me atira esta frase:

“Olá! Então deves ser tu o Português!” – E abre-me em simultâneo um sorriso autêntico de orelha a orelha.

Fiquei pregado no chão! - Depois de alguma conversa fiquei a saber que já se tinha cruzado com o rapaz de Madrid e que este lhe havia dito que vinha um Português na ruta e que seria eu que iria dormir ali. Os meus companheiros de aventura faziam questão de me apresentar como sendo “El Português que está haciendo la ruta”, mesmo quando chegavam primeiro que eu aos controlos ou alojamentos.
Sinceramente, este foi um dos factores que mais me fez vibrar, a sensação de ser bem-vindo em todos os lugares por onde passei e por quem tive oportunidade de travar algum diálogo, ainda que breve!

Além desta recepção tudo aquilo era simplesmente surreal. Literalmente tinha a casa só para mim. Mostrou-me o meu quarto e logo a dispensa – cheia de colas fresquinhas e cervejas geladas – a sala de convívio, a terraça, enfim. Pôs-me à vontade! Disse-me que o grupo grande também iria dormir ali e que queria descansar um pouco antes que eles chegassem e pergunta-me se eu podia abrir a porta se ela entretanto não acordasse com a campainha.
Acedi ao pedido e depois da merecida banhoca, fui lanchar para a terraça gozar de um fim de tarde perfeito, bem embrenhado nos Pirenéus.

Ao sair reparo que nenhum dos quartos tinha fechadura, muito menos chave. Inclusive o parque de “Bicis”, e à sua semelhança também a porta da rua era desprovida de qualquer dispositivo de tranca. Realmente ainda há sítios assim!

Perto das 17h (locais) começa a chegar a restante malta, a família Hogan e amigos.
Primeiro chegam Kate e o pai, desejosos de uma cerveja fresquinha que a Mercês, como adivinhando, trazia já para baixo junto com o seu grande sorriso. A restante malta tinha ficado a dormir a sesta junto à Ermida – afinal não fui o único a pensar no assunto – e tardaram cerca de 2 horas mais a chegar.

O jantar foi todo ele confeccionado pela dona da casa, com produtos da horta e posso-vos dizer que estava qualquer coisa de extraordinário.
Não sei precisar o que comi, pois eram tantos os mini pratos de especialidades da região que nem sei. Isto aliado ao facto de à mesa estarem 10 pessoas, todas de idades diferentes e de várias nacionalidades, falando desde Inglês passando pelo tradicional Castelhano até Catalão e Aragonês, deu ao ambiente uma atmosfera única, dificilmente igualável.


O final deste primeiro dia pautou-se por uns singelos 47.5km, com um acumulado de subidas de 1227m e 1592m de descidas, que percorri num total de 6h30, incluindo 2h15 de paragens.

Local de pernoita: Casa Vilaspasa

[Continua…]

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